sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Este foi o fim


Quando pensava em morrer, no exato momento do seu último suspiro, imaginava um longo túnel iluminado por cristais incandescentes e acompanhado por cantoras de blues gritando em seus ouvidos, como em uma grande sinfonia de sereias. Pensava que morrer significava transcender, evoluir para um degrau acima na escala musical, atingindo assim um estágio superior de existência.
Acontece que muitas vezes traçamos caminhos e idéias que acreditamos tão fielmente que não nos importamos com a realidade. Foi mais ou menos o que aconteceu neste caso particular, uma história que confunde morte, vida e sonho em um mesmo prato.
Olhava agora, no momento exato de seu último suspiro, um par de pernas que passava apressado na sua frente. As pernas pareciam caminhar de cima para baixo em um movimento fisicamente dubitável. Apesar da visão turva, era possível perceber claramente que eram pernas femininas, acompanhadas com duas meias-calças e um sapato executivo vermelho. Passaram tão rapidamente que mal conseguira fixá-los em sua mente moribunda. A sua face, marcada a ferro por uma vida espinhosa, tinha um aspecto de um completo horror, difícil de ser descrito por palavras.
Foi então neste exato momento que a escuridão começou a invadir a sua mente. O desespero talvez começava a aparecer de forma mais clara, mas já não era tão possível assim elaborar um pensamento complexo sobre existencialismo ou sobre o desespero do fim da vida. Aceitava possivelmente o que estava ali proposto para ele, mesmo com o seu olhar de terror. Pouco a pouco, em frações de segundo não ouvia, não sentia e nem falava mais nada, estava em completo êxtase e paralisado pelo completo terror do fim.
Quando finalmente o par de pernas passou pela sua visão turva, percebeu que um dos seus olhos não alcançava a luz da noite, que estava fixado no chão enquanto o outro conseguia ver por alguns centímetros parte do mundo que continuava la fora. Estava em posição fetal, talvez por saudades dos tempos em que tinha alguma segurança. Pouco a pouco, em mais uma fração de segundo, a sua visão se despediu, deixando no centro de sua perspectiva um pequeno ponto branco, cercado da escuridão que agora tomava o seu ser.
Pensou por fim que estava tudo acabado, mas ainda pensava em algumas coisas, em alguns momentos que transpassaram a sua existência. Pensava na infância e nas caminhadas pelos parques solitários de sua antiga cidade, pensava também em alguém que talvez já não sabia distinguir quem era. Talvez tivesse sido alguém importante, mas também não conseguia lembrar-se. Tudo o que conseguia naquela escuridão desesperadora era agarrar algumas lembranças espaças de um passado não tão recente quanto o tiro que levara. Estava mais lento e, em mais uma fração de segundo, talvez esta sim a última, agarrou uma última lembrança que vagava pela sua cabeça, agora fria.
Esta lembrança se consolidou como especial e escolheu, se é que fosse capaz de fazê-lo, como a última lembrança que levaria consigo daquele terror. Pouco a pouco, nesta última fração de segundo, foi identificando os elementos desta sua memória, que agora aparecia em sua mente como uma fotografia antiga, amarelada e descascada pela escuridão.
Era um quarto, uma cama, uma mesa pequena e quadrada que mal comportava uma cadeira inserida em seu interior. Tinha ao seu lado um travesseiro que servia para apoiar a sua coluna e, no colchão inferior ao da cama, estava um rapaz que não conseguia lembrar-se direito quem era. Esforçou-se ao máximo para lembrar quem era aquele que já não possuía rosto ou personalidade. Sabia perfeitamente de suas formas, cada contorno do seu corpo, passando pelo seu rosto, pelos seus dedos, pela sua cintura e pelas suas pernas. O desespero aumentou neste momento e, enquanto seu coração batia pela última vez, tentou esboçar um grito no mundo la fora, mas já não tinha energia e percebeu que aquele era de fato o fim.
Morreu, desapareceu com uma estranha feição de terror e desespero, não pela morte em si, mas por talvez não ter reconhecido de quem era aquela face que se escondeu por detrás da escuridão. Depois de estático, foi possível perceber que do seu olho emergido na superfície saltava uma lágrima esboçada, mas não desenvolvida suficiente para escorrer pelo seu rosto frio e molhado pela chuva. Este foi o fim.